Tamanha foi minha indignação, ao me deparar no último dia 15, com uma reportagem publicada pela Revista Encontro (Revista Encontro, Site oficial. Acesso em 15 de setembro de 2014. <http://sites.uai.com.br/app/noticia/encontrobh/atualidades/2014/09/11/noticia_atualidades,150314/alunos-do-colegio-arnaldo-relatam-choque-de-realidade-ao-visitar-vale.shtml>. A reportagem sob o título: Alunos do Colégio Arnaldo relatam choque de realidade ao visitar o Jequitinhonha – O projeto que leva alunos do ensino médio a trocar experiências com famílias da região mais pobre de Minas Gerais se transforma numa verdadeira lição de vida, até então tudo bem, não fosse o texto permeado por nuances preconceituosas, desrespeitosas e sensacionalistas, de uma forma humilhante que te arranca lágrimas só de ler. Não pelos fatos, porque eles existem e são inegáveis, mas pela abordagem de sempre e sempre nos rotularem como o Vale da Pobreza, o Vale da Miséria, o Vale da Fome.

O que dói, machuca e mitiga nossa condição é o lugar que nos colocam, um lugar que não é nosso, um lugar de miserabilidade, de carência extrema, sempre com o estigma de que são os pobres do Vale do Jequitinhonha, como se em BH ou outro qualquer lugar do mundo também não existissem tantos necessitados.

A história virou um burburinho nas redes sociais, uns contra, outros a favor, deu ibope e virou assunto na pequena Palmópolis. Um dos pontos importantes a esclarecer é que minha indignação não é com o Projeto Viver o Vale nem com os alunos do Colégio Arnaldo, inclusive já estou em contato com eles com a finalidade de promovermos um debate juntamente com a Universidade Estadual de Minas Gerais / UEMG onde eu sou discente, sobre as diversas questões que envolveram este episódio e as polêmicas que resultaram.

E este não é um fato isolado, em todos os lugares onde andei, quando me referia ao Vale do Jequitinhonha, as pessoas não acreditavam que aí existe comida, existe água ou qualquer sinal de civilidade, chamam nossa terra de a África brasileira, porque existe um preconceito enorme que nós mesmos muitas vezes corroboramos e reafirmamos, mas ninguém melhor do que nós para dizer quem nós somos, para desfazermos o mito que se criou sobre nós, porque isso é uma questão muito mais política do que qualquer outra coisa. Agora vamos pensar juntos, mães solteiras, pessoas que não tem geladeira, sem saneamento básico, que não comem carne, que lutam pra "sobreviver", existem em qualquer lugar do mundo. Inclusive eu que atuo na área social afirmo com conhecimento de causa que nos grandes centros os problemas são ainda mais complexos, porque existe uma grande população de rua, a criminalidade e a violência, o tráfico, tudo muito mais ampliado em função da proporção. Minha luta é muita mais profunda, é pela preservação da identidade, das subjetividades que nos formam, que não nos fazem melhores ou piores, apenas nos fazem diferentes.

Analisando tudo de uma forma menos passional, chegamos à conclusão de como esse debate é importante e saudável, porque abriu nossos olhos para nossas próprias ações, de como podemos e devemos ser mais solidários com o próximo, fazendo isso de uma forma muito respeitosa para que se preserve a dignidade do outro.

Quanto as minhas lutas, fiz dos pobres e necessitados minha causa, minha escolha de vida, de trabalho, minha produção acadêmica e intelectual e isso inclui sempre, em toda e qualquer ocasião o combate ao preconceito, seja ele qual for. E onde eu estiver e puder falar, sempre vou defender o Vale e Palmópolis, nunca negando nossas carências, mas sempre preservando nossa identidade. Porque pobre daí não é mais pobre do que aqui, são apenas pobres em lugares diferentes.

Toda interação e choque cultural pressupõem conhecermos o outro, e o outro é um ser complexo, cheio de subjetividades que podem e devem ser compreendidas com um olhar que nos faz ser melhores, não porque o outro é pior, mas porque esse outro é diferente. Falar da pobreza de um e da caridade do outro é nivelar o discurso por baixo, é humilhante, é doloroso, é preconceituoso e degradante. Coloca sempre um grupo como detentor de um bem que deve ser doado, enquanto na realidade a troca é que é o mais importante.

Que esse episódio seja tratado com toda maturidade que ele exige, e que nós possamos juntos vencer mais um grande desafio deste século, que é nos reconhecermos no outro, promovendo as diferenças e respeitando as identidades, sem achar feio o que não é espelho.

 

Bárbara Trindade

Belo Horizonte, 17 de setembro de 2014