Acostumada a ver o tempo passar calmamente por entre as manhãs e as tardes quentes da região Nordeste de Minas Gerais, a bordadeira Adelícia Amorim transforma meros retalhos em verdadeiras obras de arte. Ponto a ponto, a artista do Vale do Jequitinhonha aprecia e reproduz a leveza das flores, pássaros e encantos da natureza.

Adelícia Amorim é bordadeira, nascida em Pedra Grande, distrito do município mineiro de Almenara, no Vale do Jequitinhonha. Ainda criança, gostava de reproduzir na terra batida da fazenda onde vivia com a família as formas que lhe chamavam a atenção. Filha de pai vaqueiro e mãe costureira, Adelícia não teve a oportunidade de estudar, mas aprendeu a ler e a escrever com os pedreiros que trabalhavam para sua patroa. Intrigados com a vontade da menina de entender como as figuras encontradas nos livros se relacionavam com o texto, os gentis senhores a presentearam com caderno e caneta-tinteiro.

Desse momento em diante, os dias de Adelícia não foram mais os mesmos. Fascinada pelos traços e formas, bastava finalizar suas obrigações para se dedicar ao desenho. Pouco tempo depois, ao observar a mãe consertando algumas roupas, despertou o interesse por agulha e linha, e decidiu que iria recriar as flores que via nos jogos de cama e mesa dos senhores da fazenda onde cresceu. Autodidata, aprendeu e sofisticou sua forma de perceber e representar o bordado ao longo dos anos, criando verdadeiros jardins repletos de cores, formas e sutilezas.

Da admiração à profissão...
Aos 14 anos, mudou-se para Almenara e decidiu de uma vez por todas seguir o ofício de bordadeira. Em pouco tempo, já era reconhecida pela qualidade dos trabalhos que fazia. Os enxovais para noivas e recém-nascidos ganharam destaque, e até hoje são encomendados. Aos 18 anos, Adelícia casou-se e teve nove filhos, cuidava da casa, das crianças e das flores que estampavam seus bordados, o que complementava a renda familiar. "Eu nunca parei de bordar, meu dia começava às 6h e ia até anoitecer. Aproveitava o dia para fazer as ‘casas' e à noite alinhava, pois esse trabalho é mais grosseiro e não precisava tanto da luz do dia", explica a artista.

Já com os filhos crescidos, Adelícia continuou a bordar e a passar adiante seu conhecimento. Dia após dia, a bordadeira ensinava a todos que quisessem entender o bordado como técnica de trabalho manual, que liga o campo da criação à estratégia plástica e simbólica da arte, aprimorando seu bordado poético. Assim, depois dos jogos de cama e mesa, desenvolveu sua arte em almofadas, roupas, bolsas e quadros. Hoje, aos 78 anos, continua a bordar intensamente e a auxiliar os derradeiros aprendizes. Sua casa transformou-se em um verdadeiro jardim, colorido e acolhedor, sempre de portas abertas a todos que queiram conhecer seu trabalho ou aprender seu ofício.Humanização da arte
Conhecida e reconhecida em Almenara e região, Dona Adelícia é admirada e respeitada não só pelo conhecimento técnico e artístico, mas também pelo caráter humanitário das atividades que desenvolve e se orgulha por ensinar seu ofício aos interessados em ter uma ocupação. "Como sou vicentina, faço trabalhos com pessoas carentes, e, por ter uma liderança na penitenciária de Almenara, também já apresentei o bordado às detentas. Assim, cada uma com sua arte aprendeu um ofício antes de se reintegrar à sociedade. Durante as aulas, elas faziam almofadas, quadros, panos, uma coisa mais bonita que a outra, então eu acho que o importante é essa ajuda à comunidade", afirma.

Preocupada em mudar a vida das pessoas ao seu redor, Adelícia acredita que o bordado precisa falar e ser ouvido, para que seja efetiva sua interação, e, para ela, as cores cumprem esse papel. "As cores mudam nossa sensibilidade, comportamento e nos afastam dos problemas. Às vezes, algumas pessoas me falam que estão com depressão, aí eu chamo para bordar, pouco tempo depois elas me dizem que não houve medicamento melhor que ter aprendido a bordar. Isso é muito gratificante, quer dizer, botar cor na vida das pessoas por meio do bordado não tem preço", conclui.

De Minas para o mundo
Em busca da valorização do seu trabalho, Dona Adelicia compartilha sua filosofia de vida com outros artistas e admiradores. No começo de fevereiro, sua obra foi exposta em Belo Horizonte, na Galeria GTO do Sesc Palladium. O projeto Ação Arte Popular e Contemporânea propôs o diálogo entre a obra de Adelícia e cinco artistas contemporâneos, promovendo a aproximação entre a cultura popular e erudita, além de retomar a discussão sobre as fronteiras que dividem esses dois universos e suas interseções, lançando luz sobre os diferentes contextos de manifestação da arte.

Mais que elaborados e modestos traçados num tecido, Dona Adelícia transmite por meio de sua obra toda sua poesia. Cheia de vitalidade e repleta de delicadeza, a bordadeira expressa a leveza de sua essência de vida ao fazer das flores personagens principais do ato de bordar. Seja na representação de buquês, ramalhetes ou arranjos que compõem o bordado estampado nos quadros, a artista parece enxergar por outras perspectivas um mundo mais colorido, enfeitado pelas marcas geométricas, vibrantes, calorosas e aconchegantes do singelo bordado que dá vida ao ambiente mais funesto.

Através da arte de bordar, Dona Adelícia possui as características do povo acostumado a utilizar os recursos ao seu redor para garantir seu sustento. Com destreza e perserverança, Adelícia é mais uma mineira que acredita no trabalho árduo de hoje em prol da conquista do amanhã, representante legítima da cultura e da história que é passada de pai para filho há séculos. Pelas mãos da mestre popular, arte e vida se misturam, representando as relações socias e afetivas do seu mundo repleto de cores e flores, ponto a ponto, revelando a singularidade dos jardins de Adelícia.