Na manhã da segunda-feira, dia 3, quando as chamas que destruíram o Museu Nacional e boa parte do seu acervo diminuíram, uma imagem correu o mundo. Da entrada principal do palácio histórico, em meio à fumaça, era visível a silhueta do Bendegó, o maior e mais famoso meteorito brasileiro, composto de mais de 5.000 quilos de ferro e níquel.

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  • Enquanto a cena inflava ainda mais a reputação do meteorito, uma outra rocha espacial muito mais discreta e menos popular, porém mais valiosa, segue desaparecida sob os escombros do museu. E deixa pesquisadores de todo o mundo em estado de apreensão.

    O Angra dos Reis tem uma massa 76 mil vezes menor que a do Bendegó, meros 70 gramas. Com seus pouco mais de 4 cm de largura e valor estimado em torno de 3 milhões de reais, é a rocha mais valiosa da coleção de mais de 400 meteoritos do Museu Nacional.

    "Ele deve ter se queimado, danificado um pouco, mas resistiu, não tenho dúvida", afirma a astrônoma Maria Elizabeth Zucolotto, curadora do acervo de meteoritos do Museu Nacional. Ela lembra que a rocha sobreviveu a temperaturas ainda mais elevadas quando atravessou a atmosfera terrestre. Pela sua relevância, o Angra dos Reis era mantido escondido na sala da astrônoma e não era exposto ao público.

    Desde o incêndio, Zucolotto está impedida de entrar no prédio, ora pelos Bombeiros, ora pela Polícia Federal ou, mais recentemente, pela prefeitura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela quer entrar antes que comecem os trabalhos de reparos e sustentação das estruturas. "Existe o risco de roubarem? Existe. Sei que na sala não dá para entrar, pois o andar de cima veio abaixo. Mas quando entrarem para escorar as paredes? Alguém pode resolver levar uma lembrancinha. Ou mesmo descartar achando que é pedaço do edifício", desespera-se.

     

    A rocha
    O Angra dos Reis leva esse nome pois foi avistado e recuperado na cidade do litoral fluminense em 1869. Quem o vê, não imagina estar diante de um mineral especial. A rocha é disforme, com a superfície irregular e porosa.

    Os angritos são compostos por minerais forjados apenas nas temperaturas altíssimas do núcleo de planetas. São as rochas magmáticas mais antigas que conhecemos, formadas quando o sistema solar ainda era uma nuvem de gás e poeira.

    Estima-se que o meteorito do Museu Nacional tenha 4,56 bilhões de anos. Para geólogos e astrônomos, a pequena rocha é um livro cheio de pistas sobre a origem do Sol e dos planetas.

    Recentemente, o Angra foi analisado por Huapei Wang, do MIT, nos EUA, para investigar o comportamento do campo magnético que existia no disco de gás e poeira do sistema solar. Medindo minúsculos campos magnéticos preservados em angritos, é possível calcular o comportamento dessa nuvem primordial. O estudo foi publicado na revista Science, no início de 2017.

    "O Angra tem algumas características que o tornam especial, um exemplar único", comenta Elizabeth. "Ele tem uma composição rara, quase que inteiramente de um mineral incomum, a fassaita. Foi também o único angrito avistado, ou seja, cuja queda foi testemunhada. Os outros foram achados."

     

    A queda
    Sua saga na Terra começa no final de janeiro de 1869. Foi avistado pelo médico Joaquim Carlos Travassos, que passava num bote em frente à Praia Grande, em Angra.

    O objeto envolto em fumaça caiu no mar diante da Igreja do Bonfim. Travassos mandou que os escravos que o acompanhavam mergulhassem. Dois pedaços foram resgatados. Um deles, com meio quilo, foi confiado ao Juiz de Direito de Angra dos Reis e, mais tarde, doado ao Museu Nacional.

    Em mais de um século de pesquisas, esse fragmento foi dividido em pequenas porções. A maior é a que está enterrada nos escombros do museu. Outras frações se perderam nos experimentos, mas ainda são conhecidas frações muito menores do Angra, com no máximo 2,5 gramas, espalhadas em coleções e de posse de pesquisadores.

    Pelos relatos existentes, Travassos presenteou o sogro com o segundo fragmento resgatado do mar, que teria cerca de 1 kg. Desde então, o rastro dessa rocha se perdeu. Os pesquisadores suspeitam, em razão das características dos encaixes das pedras originais, que haja uma terceira, possivelmente ainda submersa no mar de Angra.

    Os pesquisadores acreditam que o meteorito que caiu do céu deveria ter 1,5 kg. Nos últimos anos, algumas expedições de astrônomos e geólogos tentaram, sem sucesso, localizá-la e conientizar os moradores da existência do pequeno tesouro.

    Agora, todos os pedaços significativos do Angra dos Reis estão desaparecidos.

    Zucolotto, a guardiã do meteorito no Museu Nacional, já seguiu diversas pistas do segundo fragmento. A sua última aposta é a Igreja Católica. "Em 1888, coincidentemente o mesmo ano em que a rocha teria sido doada ao Museu Nacional, deram de presente ao papa Leão 13 um meteorito chamado Angra dos Reis."

    Segundo ela, há realmente uma rocha com esse nome em um museu na residência de veraneio do papa, em Castel Gandolfo, perto de Roma. Mas o Vaticano pode ter sido enganado. O bólido que está lá não é o Angra dos Reis. Nem angrito é, mas sim um meteorito metálico de 13 kg. Não é tão relevante, mas é mais vistoso que o Angra.

    "Na hora de presentear o papa, alguém pode ter falado 'vamos dar esse outro que é mais bonito'. E o Angra teria ficado aqui no Brasil, no clero", especula Elizabeth. "Mas pode ter ido mesmo ao Vaticano e lá trocado, pois antes de ir para o acervo do museu, passou por outros locais." A astrônoma não tem recursos para seguir a investigação, mas essa não é sua maior preocupação no momento.

     

    O roubo
    Não é a primeira vez que a curadora do Setor de Meteorítica do Museu Nacional sente o frio na barriga pela ausência do Angra dos Reis. Em 1997, dois mercadores de meteoritos americanos quase furtaram a rocha violeta.

    Edward Farrell e Frederick Marselli foram ao museu interessados em comprar ou trocar rochas, algo comum no meio - parte da coleção do Museu Nacional foi formada na base da troca. Foram recebidos por outro professor, que não conhecia bem o acervo. Elizabeth, que dominava a coleção, não estava. Os dois manipularam diversos meteoritos, mas foram embora sem fazer negócio.

    Dois dias depois voltaram, ainda fingindo interesse. Mas dessa vez Elizabeth foi encontrá-los. A astrônoma ainda deu carona aos farsantes para o aeroporto do Galeão. Desconfiada com o silêncio dos americanos, assim que os deixou ela voltou ao museu.

    Farrell e Marselli haviam trocado o Angra dos Reis e mais dois meteoritos por outras rochas sem valor. Ela correu para o aeroporto e, com ajuda da Polícia Federal, recuperou as pedras.

    "Não seria difícil vender o Angra por uma grande soma. Naquela época ele devia valer muito mais, pois era único. Só dois anos depois, dois meteoritos achados 20 anos antes na Antártida foram reclassificados como angritos", conta Elizabeth.

     

    O cofre
    Vinte e um anos depois, diariamente a guardiã do Angra dos Reis sai angustiada de casa rumo à Quinta da Boa Vista na esperança de poder entrar no palácio em ruínas. Também responde a e-mails de pesquisadores de todo o mundo que chegam com a mesma pergunta: "Já achou o Angra?"

    No domingo do incêndio, por pouco não conseguiu resgatá-lo. As chamas demoraram a chegar na parte de trás do prédio. Mas os bombeiros não a deixavam entrar. "Quando o bombeiro liberou o acesso, era tarde, já estava pegando fogo no andar de cima", relembra. "Mas fiquei com medo, pensei na minha vida e desisti. Cinco minutos depois, desabou tudo." Ela conseguiu resgatar 30 dos 33 bólidos que estavam em exposição.

    Até pouco tempo atrás, Elizabeth era a única que sabia onde o Angra dos Reis está escondido, numa caixa que não chega a ser um cofre. "Eu sei onde ele está, sei a posição do armário, mas não tem como tirar os escombros que caíram em cima."

    Desesperada, certo dia passou mal na frente do museu. Temeu um ataque cardíaco. Não era, mas decidiu confidenciar a outras pessoas a localização do seu tesouro. Agora, eles e os escombros do palácio são os guardiões do único grande pedaço conhecido do Angra dos Reis.