O Vale do Jequitinhonha despertou interesse dos colonizadores desde os tempos do descobrimento. No entanto, os relatos mais consistentes sobre a região provêm do início do século dezenove, quando foi percorrido pelos naturalistas europeus. Refiro-me a John Mawe (1809); Johan Emanuel Pool (1819) e Auguste Saint Hilaire (1817), que lançaram os primeiros olhares sistematizados sobre esta vasta região, que abrange o nordeste mineiro e parte do sul da Bahia.

Os viajantes memorialistas, por sua vez, percorreram as Matas do Jequitinhonha um século depois: Leopoldo Miranda (1896-1905), Eduardo Santos Maia (1918), Frei Samuel Teterro (1917) e José Cortes Duarte (1921-1924), navegando pelo Rio Jequitinhonha em canoas, descrevendo-o com o olhar de conhecedores locais. 
Esses relatos fazem menção às dificuldades dos canoeiros em romper os estreitos rio acima, a exemplo do São Simão, localizado próximo ao antigo Farrancho (depois Guarani) e Teixeira – esse último fica a jusante da desembocadura do Rio São João, próximo ao povoado de São Roque (hoje, Itaobim).

Naqueles tempos, havia intenso comércio fluvial, polarizado pela cidade de Araçuaí – a capital do nordeste mineiro nas primeiras décadas do século vinte –, cuja localização fica próxima à confluência do Rio Jequitinhonha com seu principal afluente, o Rio Araçuaí ou Rio da Araras Vermelhas na língua Tupi-Gurarani.

Os memorialistas também referiam-se aos diversos espécimes existentes de árvores (ipê, jacarandá, cedro, braúna, vinhático, putumunju, dentre outras); animais (capivaras, antas, veados, caititus, macacos, porcos-do-mato, tartarugas, tatus e as onças pretas e pintadas); aves (araras, papagaios, tucanos, mutuns, perdizes e zabelês) e répteis (sucuri, surucucu e cascavel) existentes nas Matas do Jequitinhonha. 

Essas se estendiam de São Pedro Jequitinhonha (MG) até a foz oceânica (Belmonte-BA.) do Rio Grande, tal como o Jequitinhonha era chamado pelos antigos, compondo a Mata Atlântica – a floresta tropical, que abrangia uma área equivalente a cerca de um milhão e trezentos mil quilômetros quadrados, estendendo-se ao longo de dezessete estados brasileiros, desde o Piauí até o Rio Grande do Sul. Hoje, restam apenas 8,5% de remanescentes florestais acima de 100 hectares do que existia originalmente. Somando-se todos os fragmentos de floresta nativa acima de três hectares, a área representa atualmente 12,5% do que era a Mata Atlântica à época do descobrimento do Brasil.

Dentre os memorialistas, destaco a figura de José Cortes Duarte – um sergipano, que adotou Vigia (atual Almenara) como sua terra natal. Trata-se de um cidadão autodidata, com os seguintes livros publicados: Uma Tragédia de Sergipe e Outras Narrativas (1979), Crônicas Quadradas (1981) e O Fogo e o Boi (1976). Neste último, ele fez menção os efeitos das queimadas e do machado sobre a natureza no processo de abertura das terras do Médio e Baixo Jequitinhonha para a criação de gado. 

 

José Cortes Duarte foi também um dos principais cronistas do jornal “O Vigia”, fundado por Olindo de Miranda em 1930. Junto com Sabino Juvêncio de Miranda e Sebastião Lobo, José Cortes Duarte foi um dos fundadores do jornal “O Vigia do Vale” (1974), que circula até os dias de hoje. 

O intelectual e escritor almenarense integrou a Academia Mineira de Letras, tendo dirigido também um dos grupos teatrais mais atuantes do interior de Minas, do qual participaram duas gerações de almenarenses. 

A propósito, a ação dele no campo cultural almenarense, além dos livros e crônicas, reveste-se de suma importância, em face do trabalho realizado à frente do Grêmio Lítero Teatral Castro Alves, que abriu espaço para que jovens vigienses e almenarenses homens e mulheres viessem a se expressar numa época em que oportunidades no campo das artes eram bastante restritas, sobretudo numa região distante dos grandes centros culturais do país. 

O referido grêmio teve como palco de suas apresentações, de início, o Clube de Vigia – que veio tornar-se, mais à frente, o Almenara Tenis Clube (agremiação que marcou época no contexto social da cidade com suas memoráveis festas e bailes de carnaval) – e depois no Cine Teatro Marconi. 

Nascido em 1895, J. C. Duarte veio falecer em 1982 aos 87 anos de idade. Em primeiras núpcias, casou-se com Dona Ana (conhecida como Dona Naninha), que era filha única de João Calabocório. Desta união, resultaram os seguintes filhos: Dante, Daniel (conhecido como Dani), Dagoberto (ou Dago) Helena e Duartinha. Uma vez viúvo, ele casou-se com Dona Ilda. 
Os viajantes naturalistas e memorialistas deixaram um legado para as novas gerações, qual seja as narrativas menoráveis sobre as terras habitadas, de início, pelos povos autóctones do Jequitinhonha – uma palavra da língua Tupi-Guarani composta pelos termos “jequi” (armadilha para pegar peixes) “hy” ou “i” (rio) e “onha” (peixe). 

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A etimologia popular formou o híbrido “no jequi tem onha”, logo “no jequi tem peixe”. Os peixes, no entanto, estão sendo dizimados pela poluição das águas do Jequitinhonha, o que requer ações com vistas à preservação de seus mananciais. 

No momento em que se comemora o Dia Mundial da Água, insisto em resgatar a memória regional, da qual fazem parte os viajantes naturalistas e memorialistas. Isto diz respeito à cidadania e consciência socioambiental, cujo fortalecimento é essencial para evitar a morte do lendário rio. 

Na foto que acompanha o texto, da direita para a esquerda, vê-se Alberto Viana de Abreu, Antônio Amaral, Edgar Ferraz, Walter Garcês Mares, Odilon Santana, Piloto Galvão, Dagoberto Duarte e Enock Lisboa Gomes. Atrás, encontram-se José Valença Fazendeiro (conhecido como Zezé Fazendeiro), Dona Ilda e José Cortes Duarte, que recebia a vistia dos amigos, que lhe hipotecavam solidariedade, em 1964, na Fazenda Divina Pastora - propriedade rural, situada na confluência dos municípios de Almenara e Jacinto, à beira do Rio Jequitinhonha, cujos limites se estendiam entre os Córregos do Rubin do Norte e das Farinhas. A foto em questão pertenceu ao almenarense Valter Garcês Mares.                                                     

(*) Bacharel em Ciências Econômicas pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e Pós-Graduado em Didática de Ensino Superior (UNEB-DF). Analista Financeiro do SERPRO – Serviço Federal de Processamento de Dados e ex Coordenador-Geral da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda.